Capítulo 4 - Artano: Gota do oceano
- Rafael Telles

- 6 de jul.
- 5 min de leitura
Atualizado: 13 de jul.

Artano nasceu do acaso, melhor dizendo, do capricho dos deuses, que fingem descuidos quando, na verdade, querem interferir e controlar os destinos. Filho de Atlano, um dos muitos descendentes de Poseidon, mas esse era especial. Entre todas as criaturas do mar, apenas cinquenta nereidas já havaim habitado os oceanos, e a mãe de Atlano era uma delas. Diferente dos outros irmãos, Atlano era um deus que escolhera caminhar entre os humanos, se escondendo em portos, embarcações e cidades costeiras. Evitava vínculos. Evitava deixar rastros. E, principalmente, evitava deixar descendentes. Sabia que carregava algo grande demais dentro de si e temia passar isso adiante.
Mas o destino não se evita.
Certa noite, uma jovem do centro do país em férias na efervescente cidade do Rio de Janeiro, cruza o caminho de Atlano. Estava com mais duas amigas, bebiam drinks e se divertiam, nitidamente estava com aquele leve ar de embriaguez, e já haviam reparado no lindo homem de cabelos compridos e aparência de pescador. Não demorou para que ele as percebesse também. E, com a coragem de quem havia bebido muito mais do que devia, se aproximou do trio com foco especial na jovem de cabelo curto. O nome dela: Paola. Não demorou para que os dois estivessem se beijando, e logo se afastaram para o canto da praia, onde um aglomerado de pedras criava abrigos perfeitos para as paixões efêmeras.
Para ela, foi um encontro fugaz, quase um sonho. Suas lembranças eram difusas: o cheiro do mar, a intensidade do momento, os olhos verde-claros como águas rasas... e um pingente em forma de tridente, que ele carregava sobre o peito e brilhava mais do que seus olhos.
Para ele, foi uma noite de vulnerabilidade. Havia recebido a notícia da morte de sua mãe. As nereidas, embora divinas, não são imortais como os grandes deuses. Vivem por milênios, mas, um dia, também se despedem do mundo. A dor de Atlano era grande, por isso tentava afogar seus sentimentos. E foi nesse estado, embriagado, partido por dentro, sem clareza e controle, que se entregou aos desejos, e, com a jovem Paola, abaixou sua guarda e teve uma noite de prazer. Algumas horas depois, foram encontrados pelas amigas. Ambos dormiam abraçados. Acordaram-na para irem embora, mas o homem dormia profundamente, e aquela seria a única e última vez que se veriam.
Quase dois meses se passaram, e Paola descobriu que aquele encontro havia deixado uma semente. Ela estava grávida e sabia que jamais reencontraria aquele homem.
O que restou foi a tentativa de preservar algo do que ficou em sua memória. Deu ao filho o nome Artano, na tentativa de manter o nome do pai já que não se lembrava corretamente da pronúncia. Também mandou fazer um colar com um tridente semelhante ao que Atlano usava, e que era o detalhe mais claro que ela tinha daquela noite. Era seu gesto de amor, de lembrança e de proteção. Era tudo que podia oferecer.
Artano nasceu no coração do país, em uma cidade nova, construída sobre cerrado, distante do mar. Cresceu como um peixe fora d’água, mesmo sem entender o porquê. Sem pai biológico, foi criado por uma figura paterna que, embora generosa e afetuosa, não conseguia preencher o vazio daquele menino. Artano percebia as diferenças, havia algo nele que destoava e o incomodava: sua pele, seu cabelo, seus traços, tudo batia diferente, e essa comparação o acompanharia como uma sombra silenciosa por anos da sua vida.
Quando o pai adotivo faleceu, ainda muito jovem, Artano sentiu que precisava ser responsável por sua mãe e irmã. Mas era apenas um garoto. E logo percebeu que algo o tornava ainda mais diferente, e deixaria sua vida ainda mais complicada: descobriu que sentia atração por outros garotos. A adolescência, que já é uma travessia complexa para qualquer um, tornou-se ainda mais desafiadora para ele, que já se via como um estranho em todos os aspectos, inclusive no amor.
E, como se o destino o quisesse provar que ainda podia ser mais cruel, Paola se casou com outro homem. Um homem que Artano jamais conseguiu aceitar. Não por ciúme, mas por instinto. Um pressentimento de que ele não faria bem para sua mãe. Não sabia dizer o porquê, mas a presença daquele homem pesava. E, no fundo, ele estava certo.
Restava a ele traçar seu próprio caminho. E o único que via era através dos estudos. Tornou-se o melhor em tudo que fazia. Estudioso, aplicado, impecável. Formou-se. Criou sua própria rota. Mas todos aqueles anos de insegurança e desconexão o fizeram construir uma espécie de proteção contra o mundo. Uma concha: forte e segura, mas apertada e desconfortável de caber dentro. Mas ele se acostumou com o desconforto. Se adaptou...se curvou.
A concha virou hábito. Hábito virou identidade. Quando a adolescência passou, Artano carregava a casca como se fosse pele.
Anos depois, já adulto, mudou-se para a cidade que nunca dorme. Ele agora era admirado no trabalho, impecável nas entregas, preciso nas palavras. A eficiência virou escudo. A simpatia, armadura. Mas, por dentro, crescia o vazio, cada vez mais profundo, que o espremia entre o medo do que há dentro e os medos externos.
Mas essa dor de ter seu corpo espremido por forças contrárias desapareceu quando ele conheceu Gregória, uma mulher de imagem amigável, palavras doces e olhos que sabiam demais. Ela mudaria sua vida para sempre. Mas cobraria um preço alto: sua alma.
Mesmo com toda essa pressão, longe dos olhos da família, Artano permitiu-se viver como queria. Abriu-se para o amor. Mas seu comportamento não era um aliado. Apesar do desejo pelo relacionamento, havia o medo de aprofundar as relações e viver coisas que seriam comuns. Era como se ele nunca se sentisse digno do amor.
Mesmo sendo feito para as profundezas, Artano se mantinha sempre na superfície. Vivia seus vínculos no raso. Talvez, por isso, tentasse tanto agradar, para ninguém perceber que ele evitava mergulhar.
Mas ele não pensava sobre isso. Apenas vivia. Como se tudo estivesse onde deveria estar.
Viveu algumas histórias, mas só uma marcou. Durou sete anos. Um amor que parecia ter tudo para dar certo, mas que foi se desgastando. Uma relação que começou leve, mas se transformou em um espelho das inseguranças que carregava. Passou tempo demais tentando salvar o que já não o salvava. Quando terminou, não foi por coragem, mas por exaustão. E, com o fim, veio uma fagulha de liberdade.
Queria reaprender a respirar fora da concha. Se reconectar com algo que nunca soube nomear, talvez seu corpo, talvez sua origem. Quem sabe, até aprender a nadar. Literalmente. Porque Artano tinha medo da água. Um medo que ia além do mar: era o medo de se encontrar. Mas na profundeza de seus sentimentos, ele sabia, ainda seria o homem mais feliz do mundo.
Mas o universo não te dá tempo para aprender a nadar. Numa noite qualquer, onde nada de especial parecia poder acontecer, Artano foi atraído para um mergulho sem volta. Não era num oceano, nem numa piscina — mas num homem.
Um homem que conheceu naquela noite, mas que parecia habitar suas memórias mais antigas. Como se o conhecesse há vidas. Razeus era seu nome.
Naquele momento, Artano sentiu a água tocar sua pele, como se a humidade do ar se concentrasse em seu corpo. Sentiu o tridente que carregava no peito vibrar como se respondesse a um ímã. E, em um beijo, tudo mudou.
Ele não sabia explicar. Não precisava. Porque o corpo sabia. Porque o sangue lembrava. Porque a alma estava, finalmente, sendo chamada pelo seu nome.
A concha, construída por anos, trincou com um toque. E, por um instante, Artano foi só o que sempre foi: uma gota do oceano.
Uma gota no lugar exato que faz o mar se transformar.
A metamorfose havia começado...
Mas mal sabia Razeus que a alma de seu prometido estava sendo sugada há anos por uma linhagem sombria, um legado oculto, nascido do sangue da própria Equidna, a mãe de todos os monstros.







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