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A vida é feita de escolhas

Atualizado: 29 de jun.

As luzes dos postes piscam como sinais que ninguém sabe decifrar, durante a caminhada noturna entre um bar e o lugar que mudaria os rumos da vida na Terra. Três pares de pernas seguem leves e ansiosos — a noite prometia ser divertida, talvez especial.

O ar cheira a cigarro, suor, cerveja e alguma coisa que ninguém sabe nomear — uma eletricidade estranha, ancestral, como se algo antigo estivesse à espreita entre as calçadas e prédios.

Naquela cidade que nunca dorme, uma casa noturna se destaca mais do que qualquer outro lugar naquela noite. Funilaria.

Nome de oficina. Alma de templo. Mas não dos templos que conhecemos hoje.

Na fila, o sentimento de estar sendo observado se intensifica, não pelos olhos ao redor, mas pelos olhos do destino.

Pulseira amarela no pulso. Uma revista superficial, incapaz de detectar qualquer objeto ou substância. Uma abertura no teto revela um céu opaco, um cinza esbranquiçado, sem vida, como se os deuses não quisessem ver o que acontece na Terra.

Lá dentro, o concreto pulsa com batidas graves. Os corpos se movem como oferendas ao desconhecido. Há algo de Dionísio ali, o deus que nunca morreu.

Ele sorri nos olhos de quem dança sem lembrar do nome.

Ele respira no vapor que sobe dos drinks.

Ele sussurra entre os beijos que não precisam de promessas.

Ele reside na verdade líquida que nasce entre goles e toques.

É nesse lugar, entre o profano e o divino, que Razeus e Artano se veem pela primeira vez. Embora algo diga que essa é muito mais do que a primeira vez.

O olhar de um chama o outro como um trovão distante anuncia a tempestade. Eles não se conhecem. Mas reconhecem.

E o tempo para. Literalmente.

Não por acaso. É o dom de Razeus se manifestando, não como defesa, mas como rendição ao inevitável.

A multidão segue dançando, mas para os dois, não há mais som, nem pressa, nem antes, nem depois. Apenas agora.

Razeus era um dos três pares de pernas que acabara de chegar ao local.

Com seus quase 40 anos, ele carrega em si a poesia da maturidade. Pele parda, olhos negros como a noite, cabelos que se enrolam como serpentes tentando proteger um segredo antigo. Uma barba espessa, com alguns fios brancos que denunciam que o tempo lhe toca.

Naquela noite quente, usava bermuda e uma t-shirt branca sem mangas — ele mesmo a cortou. Nela, Zeus estampado: o rei dos deuses, senhor do céu e do trovão, guardião da ordem e da justiça.

Nos pés, tênis branco com meias na canela, pretas com 3 listras brancas, que completavam o visual de quem não teme ser lido.

Artano, por sua vez, parecia o oposto e o complemento: Todo de preto — calça, tênis, camisa. Era como se quisesse desaparecer, camuflar-se entre a multidão. Mas seus olhos não permitiam. Verde-claros, como as águas de um mar calmo que esconde um tsunami em suas profundezas. Barba aparada, fios brancos espalhados como relâmpagos discretos, mas longe de revelar seus quase 50 anos de história. Cabelos ondulados, caindo sobre o rosto, tentando esconder a alma; em vão.

Ambos tinham praticamente a mesma altura.

Os olhos se buscam com fome e silêncio. E antes de qualquer palavra, o beijo acontece — não como impulso, mas como lembrança. Como se já tivessem se beijado mil vezes em mil vidas. E estivessem apenas retomando de onde pararam.

Um desconhecido, bêbado de desejo, passa e comenta:

-Esse é o beijo mais bonito da noite… parece alma gêmea.

E era.

Eles se afastam por um segundo, rindo com os olhos daquela situação. Razeus diz seu nome. Artano responde com o dele. Mas é só protocolo. Tudo o que precisavam saber um do outro já havia sido experimentado na saliva. Líquidos são portais para esses dois. E isso não é uma metáfora.

Artano precisa ir ao banheiro — era o que estava indo fazer quando tudo aconteceu. Razeus aproveita para buscar mais uma cerveja. Sozinho por um momento, pensa em fugir. Mas algo o ancora.

Eles se procuram na multidão, como dois animais farejando o destino. Algo mudou neles. Os sentidos se expandiram. O cheiro um do outro agora é inconfundível. O desejo virou bússola.

Razeus reencontra seus amigos — os outros dois pares de pernas: Eron e Ellen, irmãos de sangue e alma. Ao ver Artano se aproximar, os apresenta.

Eron, com seu humor debochado. Ellen, com seu sexto sentido em ebulição. Ambos percebem rápido: aquilo não é só um flerte. É um chamado.

-Se vocês não ficarem juntos, o mundo perde um encontro de deuses. — brinca Eron, como um cupido lançando uma flecha — sem saber o quanto acertou.

Razeus e Artano passam horas conversando. Ou seriam minutos que parecem ter durado uma eternidade? É impossível saber. O tempo é relativo quando se carrega um DNA diferente em seu sangue.

Os amigos se despedem. Agora, restam apenas os dois. Artano também tinha um amigo presente, uma espécie de correspondente divino, que parecia ter apenas entregue aquele presente a Razeus. E foi embora sem esperar agradecimentos.

Artano mergulha nas palavras de Razeus como quem ouve um idioma que sempre falou. E Razeus, pela primeira vez em muito tempo, se sente em um porto seguro.

Fala dos sonhos.

Dos desejos.

Das dores.

Da irmã.

E chora.

Não de dor. Mas de alívio. Um choro de esperança. De algo que, mesmo não entendido, é profundamente sentido. Como se esperasse por esse momento há milênios.

Como se, finalmente, alguém tivesse tocado aquilo que nem em seus sonhos mais profundos ele havia alcançado; o ponto exato onde suas memórias e emoções se cruzam.

Os dois estavam onde deviam estar.

Razeus sabia disso desde o início. Havia recebido uma iluminação 48 horas antes, um encontro breve com um homem de fala calma e olhar penetrante. Uma espécie de oráculo.

Ele dissera, com energia firme:

-A vida é feita de escolhas.

Parece óbvio. Mas, às vezes, as coisas óbvias precisam ser ditas.

Razeus conta isso a Artano:

-Parece que fui preparado pra esse momento. Dois dias atrás, alguém me disse que a vida é feita de escolhas. E quando te vi, eu escolhi que mais ninguém aqui importava.

-O mais louco é que, antes de chegar, comentei com o Eron que faríamos como vinte anos atrás, beijos sem pudor, sem apego.

-Agora estou aqui. Apegado a você.

-E eu não me arrependo dessa escolha.

Artano ouve e sorri, um sorriso que mistura alegria e tristeza. Ele tinha esse olhar de cansaço. Talvez estivesse cansado de esperar por aquele momento. E ainda não tivesse certeza de que estava realmente acontecendo.

E então, pela primeira vez, fala de suas próprias feridas.

De um relacionamento que o fez se perder de si mesmo.

Do tempo que passou tentando reaprender a respirar.

De uma tentativa de se permitir viver, e de recuperar algumas pessoas que deixou pelo caminho.

Eles estavam ali para se curar.

Para construir algo que ainda não compreendiam. Mas o corpo já sabia. O sangue já lembrava. A alma… só estava esperando o momento certo.

Foram tantas coincidências descobertas naquela noite, que parecia mesmo que alguém havia escrito um roteiro para os dois. E isso era o mais instigante: como poderia existir tanta conexão?

O tempo do relógio já indicava mais de duas da madrugada. E para aqueles jovens adultos de meia idade, o corpo pedia cama.

Depois de tantos sinais, o esperado seria que terminassem a noite juntos, consumando aquele encontro. Mas a vida é feita de escolhas.

Razeus escolheu não seguir o que era esperado. Ignorar o protocolo.

Artano concordou. Mas fez questão de deixá-lo em casa.

Dividiram um carro de aplicativo — os destinos eram próximos. No banco de trás, os assuntos continuavam. As mãos se tocavam. A felicidade agora era mais palpável.

Combinaram de se ver no dia seguinte. No Brasil era véspera de Carnaval. Nas ruas brotavam festas. Dionísio estaria orgulhoso.

O carro chegou ao primeiro destino. Despediram-se com um beijo rápido, meio tímido por conta do motorista. Infelizmente, o mundo ainda não é gentil com esses amores. A porta se fecha. O sorriso se abre. O álcool tem sua parcela nessa euforia. Mas a sensação de ter aproveitado a festa melhor do que qualquer pessoa que estava lá…essa era genuína.

O elevador sobe.

Sexto andar.

Finalmente em casa.

Razeus não costuma usar aplicativos de conversa. Nem passar número de telefone. A comunicação era feita por rede social.

Lá pelas 3h22, ele escreve:

-Avisa quando chegar. - Uma forma sutil de dizer: Me importo com você.

Trocam áudios. E Artano diz:

-Com o nível de intimidade que a gente teve... já foi o suficiente pra deixar a minha noite muito feliz.

Razeus responde. E passa, enfim, o número de telefone. Naquele momento, perto das 4h, ele tinha certeza: aquele homem fazia parte da profecia. E ele finalmente havia feito a escolha que seus sonhos anunciavam há anos.

É tarde, caem, ambos, nos braços de Morfeu.

O raio caiu pela terceira vez.



3 comentários

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21 de jun.

Primeiro capítulo transborda sentidos que nos fazem mergulhar em nossas próprias histórias de como ainda se quisermos podemos ficar com a beleza do primeiro encontro sem necessariamente submetermos a prova horizontal no leito de uma cama. Sensacional! Por mais encontros como estes de Razeus e Artanos na vida como ela é. Parabéns autor. 🪻

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Alice de Paula
21 de jun.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Quando a gente reconhece a inspiração, mergulha na história, se encanta com os detalhes e se pega ansiosa, a ponto de dissociar e se permitir querer saber até o que já se sabe.. AMEI! Cadê o segundo capítulo?!

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Leandro Machado
21 de jun.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

O primeiro capítulo já me envolveu mais do que esperava… Queros saber a história de Artano, quero saber a história de Razeus! E mais do que isso, quero saber pra onde essa história vai!!! Ansioso para os proximos capítulos!!!

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